quinta-feira, 11 de abril de 2013

PODER FAMILIAR


O PODER FAMILIAR
Professor: Jorge Ferreira da Silva Filho*

Disponibilizado no Blog EnsinoDemocrático -  http://jorgeferreirablog.blogspot.com

 Autorizada reprodução total ou parcial, desde que seja citado o site

 

1.      CONCEITO.  O poder familiar é a autoridade, concedida pela lei, que os pais ou os têm sobre os filhos menores. Um poder sempre exercido  no interesse destes. Além dos pais, tal poder se concede àqueles que assumem a responsabilidade pela condução de qualquer entidade familiar em que haja menores. [i] Com as transmutações nas relações jurídicas familiares, o poder familiar, antigamente perspectivado como poder do pai — pátrio poder  — (http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2013/03/mini-dic.html  ) passa a constituir na legislação brasileira moderna um munus, pondo em evidência os deveres dos pais.[ii] Há um complexo de poderes dos pais em relação aos filhos menores, destacando-se o dever da guarda .[iii]   

2.      DA TRANSIÇÃO DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR. Na antiga sociedade patriarcal o homem era o chefe da família: o provedor e o senhor. No Código Civil de 1916, os pais tinham o pátrio poder, porém o exercício dos poderes era concedido ao “marido com a colaboração da mulher”.[iv] Com a igualdade entre homem e mulher, direito fundamental, não se pode mais dizer em poder do pai. O Código Civil de 2002 aboliu a expressão “pátrio poder”, passando a tratar do tema sob a rubrica “Poder Familiar”.

3.      PODER E PODER-DEVER. Se há um poder dos pais em relação aos filhos menores há também o direito de os filhos exigirem dos pais: a orientação na vida, a proteção, a educação, o sustento, a moradia etc.

4.      EXERCÍCIO CONJUNTO PELOS PAIS.  Determina o Código Civil que “ Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade” (CC 1.631). Nota-se, portanto, que o poder familiar será exercido em conjunto, de forma democrática. À família cabe o complexo de deveres instituídos no caput do artigo 227 da Constituição Federal sendo o exercício do poder familiar uma forma de assegurar o cumprimento das normas da Carta. No mesmo sentido encontra-se a redação do art. 21 do ECA, dizendo que o poder familiar será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe.  Divergindo os pais quanto à decisão de poder familiar a questão pode ser dirimida pelo juiz. Isso, entretanto, é desaconselhável na prática, pois a saída vitoriosa do pai ou da mãe deixa sequelas. A mediação é o mais indicado para resolver as divergências.  

5.      TITULARIDADE DO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR DE PAIS SEPARADOS. No tocante ao exercício do poder familiar por pais separados o legislador determina que “a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos” (CC 1.632).

6.      INCAPACIDADE DE O PAI BIOLÓGICO DE FILHO NÃO RECONHECIDO EXERCER O PODER FAMILIAR. A dicção da lei é clara: “o filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar exclusivo da mãe”. Acresce, ainda, que “ se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo, dar-se-á tutor ao menor”, ficando o tutor com a obrigação de exercer o poder familiar (CC 1.633). Concluindo: ao menor sempre procurará o Estado garantir-lhe alguém que assuma o poder familiar.

7.      FORMA DO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR. Embora o legislador não defina o poder familiar, é possível alinhavar como este se exterioriza e quais condutas são esperadas de quem o detém. Assim, enuncia o legislador: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição” (CC 1.634).

8.      SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR. Preocupa-se o legislador com hipóteses nas quais os pais ou o responsável, por circunstâncias temporárias, não se mostrem em condições de exercer o poder familiar no interesse do menor. Por isso, é possível que o juiz suspenda o exercício do poder familiar nos seguintes casos: “Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos”. Tem o juiz o poder para, desde que “requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha” Também o pai ou a mãe que for condenado por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão, terá o poder familiar suspenso (CC 1.637: caput e parágrafo único).

9.      EXTINÇÃO DO PODER FAMILIAR. O legislador construiu as hipóteses em que haverá a extinção do poder familiar em duas vertentes: 1º) fatos jurídicos: pela morte dos pais ou do filho; pela maioridade; pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único. 2º) por atos judiciais: adoção;  decisão judicial que decreta a perda do poder familiar ao pai ou à mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo 1.637. Nota-se, pois, que não há um rigor metodológico para tratar o tema. A doutrina entende que há diferença entre a perda e a extinção do poder familiar.[v] Aquela resulta de uma sentença judicial com forma de sanção por um comportamento censurável do titular do poder.

10.  A INEFICÁCIA DE NOVO RELACIONAMENTO DOS PAIS EM RELAÇÃO AO PODER FAMILIAR. Ao novo relacionamento dos pais o legislador estabelece que: “O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro”. Ao pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável, incidem as mesmas regras (CC 1.636, caput e parágrafo único).

11.  ASPECTOS PROCESSUAIS. Tanto a suspensão com a perda do poder familiar somente se efetiva por sentença, ou seja, dentro de um processo. A legitimidade ativa é conferida pela lei a quem tenha legítimo interesse (ECA 155). O Ministério Público goza dessa prerrogativa (ECA 201, III). O Conselho Tutelar pode representar perante o Ministério Público (ECA136 XI), mas não tem a legitimidade passiva para propor a ação de suspensão ou perda do poder familiar. O juízo competente será o da vara de família, quando o menor estiver na companhia de algum integrante da entidade familiar, sem que isso represente situação de risco (ECA 98). Havendo risco para o menor, o Juízo desloca-se para a vara da infância e juventude (ECA 148, p.u.). [vi]

 

 

 

 

 

* Professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor da Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho.  Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG.  Integrante do IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Associado ao IBRADT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Coordenador Subseccional da ESA – Escola Superior de Advocacia – OAB/MG -2010. Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil no Centro Universitário do Leste Mineiro – Unileste – 2005 a 2010.

 



[i] LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 272.
[ii] Paulo Luiz Netto Lôbo. Do Poder Familiar. In: Revista Síntese Direito de Família. nº 67, Ago-Set/2011. São Paulo: IOB, p. 19. 
[iii] CC 1566, IV.
[iv] CC/16, art. 380.
[v] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.424.
[vi] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 426.

sábado, 6 de abril de 2013

DANO EXISTENCIAL E TRÂNSITO


TRÂNSITO INTERROMPIDO NA RODOVIA PODE GERAR INDENIZAÇÃO?

 

*Artigo de minha autoria publicado no jornal Estado de Minas, edição de 05/04/2013; Caderno - Direito & Justiça.

 


Receber uma importância em dinheiro, como forma de compensação pelas várias horas que passamos parados numa rodovia, em decorrência da interrupção do tráfego motivada por acidente de trânsito, é o direito defendido neste artigo.

Os acidentes provocados pela imprudência dos condutores de veículos de carga (caminhões, carretas e suas composições — “bi-trens”) tornaram-se ocorrências do cotidiano das nossas rodovias. Caminhões  tombam, colidem uns contra os outros, perdem a direção e caem nas valas. Com isso, geralmente,  o trânsito fica interrompido nos dois sentidos da rodovia. O efeito direto disso para os demais usuários  é angustiante: ficar, por vários minutos, “parados na estrada”. A mente e o corpo são afetados.   Uma mescla de frustração e aflição toma conta de muitos. O desconforto instaura-se: calor, sede, fome etc. Penso que a maioria dos leitores concordará que o tempo “jogado fora” na estrada representa uma perda qualitativa e quantitativa de um projeto na vida: um tempo que a pessoa deixa de ficar com sua família; a perda de uma aula; o não comparecimento a um evento importante para a carreira profissional; os sofrimentos físicos como sede e fome; o confinamento no interior do veículo durante a chuva etc. Seria isso um dano indenizável?

Provavelmente muitos juízes dirão que os efeitos da retenção numa rodovia seriam meros aborrecimentos; inconveniências da vida moderna. Entretanto, desenha-se na jurisprudência a concreta possibilidade de o causador do acidente de trânsito ser obrigado a indenizar todos que ficaram “parados na estrada”. Trata-se da reparação pela ocorrência do dano existencial. Explico.

O dano existencial ganhou conteúdo e forma expressiva no mundo jurídico a partir do  caso de Daniele Barillà, julgado na Itália nos anos 90. Barillà ficou preso por 8 anos, injustamente. Reconhecendo o erro o Estado Italiano o indenizou, pelas perdas materiais (lucro cessante), pelos danos morais (sofrimento decorrente da detenção), e pelos danos referentes às perdas no seu projeto de vida (o dano existencial). O professor e doutrinador italiano Paolo Cendon percebeu que essa decisão continha a gênese de uma variante da responsabilidade civil extracontratual (“nuova” responsabilità aquiliana: il danno esistenziale).

Para CENDON o comprometimento das atividades cotidianas (frustração na agenda), pelas quais a pessoa se realiza, impossibilitando a realização de momentos felizes, configura uma deterioração da qualidade de vida.

Estudiosos brasileiros, dentre os quais o ex-procurador do Estado de São Paulo, Amaro Alves de Almeida Neto, esposam o entendimento no sentido de que os enunciados contidos nos artigos 1º, inciso III, e 5º, incisos V e X, ambos da Constituição Federal, perfazem o arcabouço necessário para “admitir a ressarcibilidade do dano existencial” no ordenamento jurídico brasileiro.

Paradigmática é a decisão brasileira do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região que interpretou ser a exigência do trabalho em horas extras, além do limite legal, elemento apto a privar o trabalhador do convívio familiar e de outras atividades fora do trabalho. Em razão disso, condenou o empregador a indenizar o trabalhador.  Embora o acórdão não se refira ao dano existencial, não há dúvida no sentido de que, neste caso, o dano refere-se à perda dos pequenos projetos existenciais da vida.

De forma mais arrojada se postou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao reconhecer expressamente a caracterização do dano existencial, num caso em que a apelante sofrera corte injusto no fornecimento de água (Ap. Cível 70044580918 - 9ª Câm. Civil - outubro 2011). A realidade brasileira, porém, ainda se caracteriza pelo fato de que os danos aos pequenos projetos de vida classificam-se como variantes do dano moral.

Visto acima que nosso ordenamento jurídico, implícita ou expressamente, acolhe o direito de ser indenizado por dano existencial, passo a comparar os efeitos jurídicos dos atrasos de voos aéreos com as interrupções no trânsito. Como se sabe o STJ vem pronunciando que  “o dano moral decorrente de atraso de voo prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador opera-se in re ipsa” (REsp 299.532). Penso que, a rigor, os efeitos de um atraso de voo para o passageiro, ontologicamente, não diferem dos gerados para alguém que fica parado injustamente na estrada. São as perdas na qualidade de vida.

Os fundamentos para a indenização, porém, são diferentes: a empresa aérea responde perante o passageiro com base na legislação do consumo (responsabilidade objetiva e contratual).  No caso das pessoas que sofrem com a interrupção do trânsito na rodovia, a responsabilidade é subjetiva e extracontratual, ou seja, quem deve indenizar é aquele que, por conduta ilícita, provocou o acidente que impossibilitou a circulação de veículos na estrada. Se no acidente há caminhões, a responsabilidade pela indenização será da transportadora, do proprietário do veículo e do condutor.

Vislumbro até que cabe uma ação coletiva (interesses individuais homogêneos) movida por todos que ficaram retidos na estrada, contra as pessoas físicas ou jurídicas acima elencadas.

Não é difícil perceber que se as pessoas vítimas deste dano existencial ingressarem em ações coletivas, o montante da indenização a ser paga pelo causador do acidente pode atingir cifras altíssimas. Quem sabe isso não seria o elemento deflagrador de uma mudança comportamental no trânsito?

 Jorge Ferreira da Silva Filho. 
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho.
Professor da Faculdade de Direito de Ipatinga - FADIPA.
Presidente da Seccional Vale do Aço do Instituto dos Advogados de Minas Gerais - IAMG. Associado ao IBDFAM.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

ADOÇAO


A ADOÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Professor: Jorge Ferreira da Silva Filho*

Notas Didáticas Sintéticas para Orientação de Alunos de Cursos de Direito

 Disponibilizado no Blog EnsinoDemocrático -  http://jorgeferreirablog.blogspot.com

 Autorizada reprodução total ou parcial, desde que seja citado o site

 

1.      CONCEITO. A adoção é um ato jurídico de natureza processual constitutiva pelo qual uma pessoa (a adotada) passa a ter todos os direitos e obrigações em relação à outra pessoa (o adotante) como se fosse filho biológico desta. Os romanos consideravam a adoção (http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2013/03/mini-dic.html )  um meio para instituir validamente uma pessoa como herdeiro de uma família que não tinha filhos. Assim se podia preservar o culto familiar, manter a existência da família, assegurar sucessores políticos, como no caso do Imperador Justiniano que era filho adotivo de Justino. [i]

2.      TERMINOLOGIA. Adotante é a pessoa que adotou alguém. Postulante é o pretende adotar. Adotando é o menor, o adolescente ou o maior que o adotante  pretende adotar.  O adotado  é a pessoa que passou a ter uma nova filiação, sendo essa resultante de  uma sentença constitutiva. Família natural é a unidade do casal sem filhos ou “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes” (ECA 25). Família extensa ou ampliada (http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2013/03/mini-dic.html )é a comunidade formada pela família natural acrescida com parentes próximos.

3.      ASPECTOS HISTÓRICOS DA LEGISLAÇÃO SOBRE ADOÇÃO. De prático, nada havia nas  Ordenações Filipinas sobre a adoção.[ii] O Código Civil de 1916 regulamentara a adoção, por meio dos artigos 368 a 378. Por este Código, somente os maiores de 30 anos poderiam adotar, sendo que o adotante deveria ser pelo menos 16 anos mais velho que o adotado. Se o adotante tivesse filhos legítimos ou reconhecidos, o adotado não teria direito à sucessão hereditária. A adoção fazia-se por escritura pública (CC/16; 375). Com a Constituição Federal igualou-se, em direitos e obrigações, o filho adotado e o filho natural. Em 1990 surgiu a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente  — ECA  — que regulamentou a adoção de crianças e adolescentes.  Com o advento do Código Civil de 2002, a adoção passou a ser regulamentada por meio dos artigos 1.618 a 1629, criando-se uma “zona cinzenta”, pois na nova lei, discorria-se também sobre adoção de menores. Com o novo Código, a adoção poderia ser empreendida por qualquer pessoa maior de 18 (dezoito) anos, mantida, porém, a diferença de idade entre o adotante e o adotado (16 anos). Não mais se admitia a adoção por escritura pública, mas apenas por processo judicial (CC/2002; 1.623). Em 2009, uma revolução ocorreu na legislação sobre a adoção. Com a Lei 12.010 de 04-08-2009, denominada Lei da Adoção, foram revogados dez artigos do CC/2002 (artigos 1.620 a 1.629) e o parágrafo único do artigo 1.618. Modificou-se a redação dos artigos 1.618 e 1.619. Expressamente, a adoção de crianças e adolescentes passou a ser regida exclusivamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - (Lei 8.069/90). A adoção de maiores continuou permitida (CC 1.619), desde que realizada por processo judicial.  As regras do Estatuto da Criança e do Adolescente seriam aplicadas naquilo que coubesse quanto ao procedimento de adoção. O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução CNJ/2008, regulamentou a implantação e o funcionamento do Cadastro Nacional de Adoção. Com a globalização, a adoção realizada por estrangeiros passou a preocupar o legislador. Os traficantes de menores camuflavam-se na legislação e promoviam adoções ilegais, pois a finalidade real do ato jurídico não era a proteção da criança, mas sua exploração sexual ou como agentes em atividades criminosas. [iii]

4.      ESTRUTURA TÓPICA-LEGISLATIVA SOBRE A ADOÇÃO NO ECA.  Mediante a rubrica “Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária” (Artigos 19 a 52-D do ECA), o legislador organiza sua legiferação criando duas categorias de família: A família natural; A família substituta.  Na Seção que versa sobre a família natural (ECA 25 a 27) tem-se a definição legal dessa e também o conceito de família extensa ou ampliada (ECA 25, p.u.). Na Seção que trata da família substituta, o legislador aborda os casos em que se faz a colocação da criança e do adolescente numa família substituta, para depois, tratar dos institutos da guarda (ECA 33 a 35), da tutela (ECA 36 e 37), finalmente da adoção (ECA 39 a 52-D). A adoção configura uma das vias pela qual se faz a colocação da criança em família substituta à família natural (ECA 28).

5.      ADOÇÃO COMO ATO EXCEPCIONAL.  O ambiente em que, preferencialmente, deva ser mantida a criança ou o adolescente é o de sua família natural ou extensiva.  A adoção é medida excepcional, devendo ser realizada com cuidado, uma vez que é ato irrevogável (ECA 39, §1º). Exige a participação pessoal do adotante, sendo vedada a adoção realizada por procurador (ECA 39, §2º).

6.      EFEITOS JURÍDICOS DA ADOÇÃO. A sentença de adoção dá ao adotado a condição de filho. Este passa a ter “os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. No tocante aos direitos sucessórios, na adoção a lei impõe a reciprocidade entre o adotado, seus descendentes, e o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau. O deferimento da herança se faz seguindo a ordem da vocação hereditária. Situação especial é configurada quando um dos cônjuges ou concubinos (http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2013/03/mini-dic.html ) adota o filho do outro. Neste caso, são mantidos os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes (ECA 41; §§ 1º e 2º).

7.      DIREITO DO ADOTADO DE CONHECER SUA ORIGEM BIOLÓGICA. O adotado tem o direito de conhecer sua origem biológica e de ter acesso irrestrito ao processo que lhe constituiu o vínculo de adoção (ECA 48). Trata-se da ação para declaração da ascendência genética. [iv]

8.      REQUISITOS PARA O DEFERIMENTO DA ADOÇÃO DE MENOR E ADOLESCENTE. No curso do procedimento de adoção, exige-se a prova de que o adotante:  tenha pelo menos 18 anos; não seja ascendente do adotando; não seja irmão do adotando; seja pelo menos 16 anos mais velho que o adotando (ECA 42, §§ 1º e 3º). Nos fundamentos da sentença de adoção o juiz deverá explicar que a medida apresenta “reais vantagens para o adotando” (ECA 43).  O adotante pode ser casado ou solteiro, pois seu estado civil é indiferente para o deferimento da adoção (ECA 42, parte final).  Os pais biológicos do adotando ou o representante legal deste  devem consentir com a adoção. Se os pais do menor ou do adolescente não forem conhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar, fica dispensado o consentimento (ECA 45). Se o adotando for maior de 12 anos (adolescente), a adoção exige o seu consentimento (ECA 45, §2º). Necessário, também, a realização do estágio de convivência, no prazo definido pelo juiz (ECA 46). O estágio de convivência pode ser dispensado quando o adotante tiver a guarda legal do adotando por tempo suficiente para aquilatar a conveniência da adoção (ECA 46, §1º).

9.      GUARDA LEGAL E GUARDA DE FATO. Importante para entender o procedimento de adoção é a exata compreensão do conceito de guarda. A guarda dos filhos menores é fixada aos pais, casados ou não. Da mesma forma, na tutela e na adoção,  de menor ou adolescente), tem o tutor e o  adotante, respectivamente, a responsabilidade pela guarda da pessoa tutelada ou adotada. São as guardas institucionais. A primeira é imposta pela lei. As duas outras são criadas por sentenças; ato judicial. A guarda de fato , todavia, ocorre quando alguém assume, sem ordem judicial, a custódia de um menor ou adolescente, prestando-lhe assistência moral, material e educacional. A guarda legal, prevista no ECA, destina-se a regularizar a posse do menor    posse de fato (sic) —  fixando ao detentor da guarda a obrigação de prestar assistência moral, material e educacional ao menor e adolescente, inclusive o poder de opor a guarda a terceiros e até aos pais biológicos (ECA 33). Quando o procedimento de adoção ou de tutela está em trâmite, a guarda legal pode ser deferida liminarmente ou incidentalmente, exceto na adoção por estrangeiro (ECA 33 §1º). Admite-se, também, excepcionalmente, que a guarda legal seja deferida liminarmente “fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados” (ECA 33 §2º). A guarda deferida pelo juiz “confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários” (ECA 33 §3º).

10.  ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. Essa categoria de adoção se verifica quando os pais biológicos resolvem dar o filho em adoção para uma pessoa previamente determinada. Os pais biológicos escolhem o adotante para o filho. Trata-se de um dos assuntos mais polêmicos no direito que versa sobre a adoção, pois envolve a dispensa da consulta ao cadastro previsto no art. 50 do ECA: “A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção”.   O TJSP, em 2001, no AgI 77.737-0/1-00, entendeu que “a inscrição no cadastro não se caracteriza pressuposto necessário da medida de colocação em família substituta”, tendo frisado que “não é obrigatório porque a lei não impõe essa condição prévia à adoção”.[v] Atualmente, o Ministério Público, convergiu para a postura de não admitir “a adoção por pessoas não inscritas”.[vi] Quando a mãe entrega o filho ao adotante de sua escolha, o Ministério Público deflagra o pedido de “busca e apreensão” do menor. Com a Lei da Adoção, a observância da ordem cronológica tornou-se obrigatória (ECA 197-E, §1º), excepcionando-se, apenas, os casos elencados no art. 50, §13 do ECA.

11.  A ADOÇÃO CONJUNTA. A legislação permite que as pessoas casadas ou aquelas que vivam em união estável possam adotar conjuntamente um menor ou adolescente. Exige-se a prova de que há estabilidade na  família (ECA 42, §2º). Situação especial surge quando um casal se separa no curso do estágio de convivência com o adotando. Neste caso, os divorciados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, mas devem previamente entrar num acordo sobre “a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão” (ECA 42 §4º). Na adoção conjunta, realizada por divorciados e ex-companheiros, quer o legislador que se aplique a guarda compartilhada, desde que comprovado o benefício para o adotando (ECA 42 §5º).  

12.  ADOÇÃO UNILATERAL. A lei permite que uma pessoa possa adotar o filho de outra, quando esta se posta como seu cônjuge ou companheiro. Como exemplo, o filho de  uma mãe, solteira ou divorciada, poderá ser adotado pelo  novo marido ou companheiro de sua genitora. Neste caso, excepcionalmente, a pessoa adotada não cortará o vínculo com a mãe biológica, por expressa previsão legal (ECA 41; § 1º). Essa categoria de adoção é também denominada adoção híbrida ou semiplena.[vii] Pela lei, no exemplo retro, a adoção dependerá do consentimento do pai biológico (ECA 45). Há críticas quanto a essa exigência, na hipótese de abandono afetivo da criança  pelo  pai biológico. O padrasto, no caso, deve mover a ação de adoção cumulando os pedidos de adoção e destituição do poder familiar por abandono (CC 1.638, II).   

13.  O ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. Antes da Lei da Adoção, o ECA dizia que a adoção seria  precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciária fixasse, podendo essa etapa ser dispensada se o adotando não tivesse mais de um ano de idade ou se, qualquer que seja a sua idade, já estivesse na companhia do adotante durante tempo suficiente para se pudesse “avaliar a conveniência da constituição do vínculo”.  Sobre a adoção por estrangeiro “residente ou domiciliado fora do País, o estágio de convivência, cumprido no território nacional”, seria de “no mínimo quinze dias para crianças de até dois anos de idade, e de no mínimo trinta dias quando se tratar de adotando acima de dois anos de idade”. Com a Lei da Adoção, o estágio de convivência continuou sendo exigido para o procedimento de adoção, porém admitindo-se a sua dispensa “no caso em que  o adotando já estivesse sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente para que fosse  possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo” (ECA 46 §1º). A guarda de fato, expressamente, não geraria diretamente  a dispensa da realização do estágio de convivência (ECA 46 §2º). A adoção, realizada por adotantes residentes ou domiciliados fora do país, passou a exigir o estágio de convivência por período  mínimo de 30 dias,  cumpridos no território nacional (ECA 46 § 3º). Por fim, ao  estágio de convivência exigiu-se o acompanhamento  “pela equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida”.

14.  ADOÇÃO À BRASILEIRA. No Brasil ocorreu que a sociedade não recriminava quem declarava  o parto alheio, como se seu fosse, nem aquele que registrava como seu o filho de outrem, para fins de beneficiar a criança, normalmente egressa de família pobre. A isso se denomina adoção à brasileira. Atualmente, o Código Penal brasileiro estabelece o tipo penal do artigo 242: “Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”. A não censurabilidade social continua contemplada, pois se o crime for “praticado por motivo de reconhecida nobreza”, o juiz poderá reduzir a pena ou deixar de aplicá-la.[viii]

15.  ASPECTOS PROCESSUAIS DA ADOÇÃO. Determinado pela lei que toda adoção somente se efetiva por sentença judicial, deve-se perquirir a respeito dos elementos deste processo. O juízo competente para a ação de adoção de maiores é a vara de família. Para a adoção de menores e adolescentes, a competência é do juízo da vara da infância e juventude (ECA 148, III). A Lei da Adoção criou aspectos processuais inovadores no procedimento concernente à adoção. Cortou-se, a possibilidade legal, de o casal interessado na adoção procurar diretamente os pais de uma criança a ser adotada. Tanto os pais que desejam dar a criança em adoção, quanto as pessoas que desejam adotar (postulantes à adoção) deverão se inscrever num banco de dados . São dois registros prévios: crianças e adolescentes em condições de serem adotados; pessoas interessadas na adoção (ECA 50). As inscrições não são meras faculdades, pois exigem deferimento (ECA 50 §1º). Para obter esse deferimento, o postulante à adoção deverá apresentar uma petição inicial observando os requisitos legais específicos (ECA 197-A).  Em 48 horas, a autoridade judiciária deverá dar vista ao Ministério Público. Este terá o prazo de 5 (cinco) dias para apresentar quesitos à equipe interprofissional, requerer a oitiva dos postulantes e de testemunhas ou requerer a juntada de documentos complementares (ECA 197-B). A equipe interprofissional emitirá um estudo psicossocial (ECA 197-C), obrigatório. Certificado nos autos que os postulantes cumpriram a exigência de participação no programa instrutivo oferecido pela Justiça da Infância e Juventude, abre-se vista ao MP, com cinco dias, retornando ao Juízo para deferir ou indeferir a habilitação (ECA 197-D). Se a habilitação for deferida, “o postulante será inscrito nos cadastros referidos [ECA  50], sendo a sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis”.  A Lei de Adoção determina ainda que a “ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei, quando comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando”. Se os postulantes sistematicamente recusarem as crianças e adolescentes indicados, a habilitação poderá ser reavaliada (ECA 197-E).

16.  ADOÇÃO INTERNACIONAL. A lei conceitua a adoção internacional como “aquela na qual a pessoa ou casal postulante é residente ou domiciliado fora do Brasil, conforme previsto no Artigo 2 da Convenção de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, aprovada pelo Decreto Legislativo no 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgada pelo Decreto no 3.087, de 21 de junho de 1999”. O rito para a adoção internacional deve observar os artigos 165 a 170 do ECA, desde que respeitando as adaptações determinadas nos complexos incisos e parágrafos do art. 52 também do ECA.

 

 

* Professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor da Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho.  Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG.  Integrante do IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Associado ao IBRADT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Coordenador Subseccional da ESA – Escola Superior de Advocacia – OAB/MG -2010. Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil no Centro Universitário do Leste Mineiro – Unileste – 2005 a 2010.

 

 



[i] CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.125.
[ii] LÔBO,  Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 250.
[iii]. “As crianças vendidas para a Alemanha são em muitos casos exploradas sexualmente e forçadas a atividades criminosas, como roubar ou vender drogas, segundo a Terre des Hommes. Em muitas cidades grandes existe o problema cada vez maior dos trombadinhas – crianças trazidas do Leste Europeu especialmente para bater carteiras. Outro ramo de trabalho dos traficantes é a adoção ilegal. Como mercadorias, crianças são oferecidas em catálogos na internet. As preferidas para adoção são brancas, saudáveis e recém-nascidas” - Cf. http://www.dw.de/dw/article/0,,1036172,00.html .
[iv] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011,p. 492.
[v] ISHIDA,  Válter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente:doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.113.
[vi] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 486.
[vii] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 478.
[viii] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 485.
  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 400.