segunda-feira, 29 de junho de 2015

PORTE DE ARMA - UM DIREITO

O PORTE DE ARMA COMO EXERCÍCIO DA DIGNIDADE

* Artigo publicado no Jornal Estado de Minas; Edição de domingo - 28/06/2015, página 7.

foto do Google    
Se o médico Jaime Gold, esfaqueado na Lagoa Rodrigo de Freitas em maio de 2015, portasse uma arma de fogo, teria a chance de defender-se contra seus atacantes.  A população brasileira caiu num engodo. Deixou-se envolver na fala mansa e doce do discurso político de que não seria politicamente correto portar uma arma de fogo. Muitos, espontaneamente, entregaram suas armas. Abriram mão de uma proteção que poderiam ter sem exigir uma contrapartida das autoridades (desarmar a bandidagem; aumentar a segurança nas ruas; assegurar um policiamento ostensivo eficaz e eficiente).
Nossa Constituição consagra aos brasileiros o direito à vida, mas, em termos práticos, não o assegura. Ao contrário. O Estado propala que o cidadão deva viver em estado neurótico de alerta: tranque as portas; não deixe o carro aberto; apague as luzes da casa quando viajar; não reaja se for assaltado; desconfie de estranhos etc. O médico Jaime não reagiu, apesar disso foi esfaqueado.
Os motivos dos esfaqueadores do médico talvez sejam divisados apenas numa incursão psicanalítica ou no discurso moral de que os agressores são também vítimas; vítimas sociais. Alguns diriam até que eles repousam no discurso político de que a elite é o inimigo.  Entretanto, isso nada resolve.
O direito à vida é o pilar maior da nossa própria existência. Por isso, universalmente, não é crime matar alguém em legítima defesa. Contudo, para que se efetive a legítima defesa é necessário assegurar a paridade de armas. Com as mãos, não se exerce a legítima defesa contra um atacante armado.
Recordo-me de antiga leitura, na qual se relata o caso de uma jovem judia, ex-dançarina, num campo de concentração, na fila para adentrar à câmara de gás.  Conhecedor da arte da jovem, um oficial da SS, ordena-lhe que dance nua para os soldados. A moça atende ao comando e dança. Lança-se com corpo e alma no derradeiro ato.  A plasticidade dos movimentos contagia e embriaga a plateia.  De repente, num inesperado gesto, avança sobre o cinto do militar, arranca-lhe a arma do coldre, atira e o mata. Em instantes é fuzilada. Ia morrer mesmo! Pensara. Todavia sua morte foi significante e significado.  Deu aos seus últimos instantes de vida um sentido; ungiu-se com a dignidade.      
O povo adora ecoar frases que foram feitas para enganar. Assim, passou a repetir: “quem usa arma de fogo é bandido”; “a pessoa de bem não usa arma de fogo” etc.  Soa ingenuidade num país como o Brasil, no qual o Estado não garante segurança alguma, abrir mão do direito de portar uma arma para se defender. Verdade é que a maioria dos brasileiros, em referendo, disse não à tentativa de proibir o comércio de arma de fogo.  Apesar disso, nos governos de Fernando Henrique e de Lula, o que se viu foi o Estado desrespeitar as emanações da vontade popular. Por meio do Estatuto do Desarmamento, tão ardorosamente defendido por Renan Calheiros, criaram labirintos complexos, um calvário propriamente dito, para quem quisesse adquirir legalmente uma arma. O porte tornou-se praticamente impossível ao civil comum.
Há pessoas que sabem que podem ser assaltadas nas ruas e assassinadas por marginais, até dentro de suas próprias casas. A Polícia não as protegerá. O Estado poderia pelo menos não dificultar, aos que assim desejarem, a obtenção do porte de arma. Assim, poderiam morrer com dignidade.   Urge afastar uma lei que se mostrou demagógica, sem razoabilidade e proporcionalidade.


Jorge Ferreira S. Filho. Advogado - Articulista. E-mail professorjorge1@hotmail.com

sábado, 13 de junho de 2015

HERANÇA - CONCORRÊNCIA - GUINADA NO STJ

HERANÇA -  CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA – A GUINADA HERMENÊUTICA

OBS:  Texto original escrito em 2012. Com a mudança de entendimento sobre a matéria, ocorrida no STJ em outubro de 2014, promovi as atualizações hermenêuticas.

1.      O SENTIDO DA EXPRESSÃO “CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA”. O Código Civil de 1916 dispunha no artigo 1.603 que a sucessão legítima era deferida na seguinte ordem: I - aos descendentes; II - aos ascendentes; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais; V - aos Municípios etc. O Código Civil 2002, revolucionariamente, modifica a lógica de deferimento da sucessão aos descendentes e ascendentes e dispõe no  artigo 1829 que: A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ....; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge. Isso significa que os ascendentes e os descendentes do morto não mais terão direito à totalidade da herança. Eles poderão receber menos, pois uma parte da herança do que lhes reservava a legislação anterior ficará para o cônjuge supérstite. Duas classes de herdeiros concorrendo na herança: isso é a concorrência sucessória. Cf. http://jorgeferreirablog.blogspot
2.      A RECEPTIVIDADE AO INSTITUTO DA CONCORRÊNCIA. A doutrina é unânime no reconhecimento de que a concorrência sucessória se tornou o ponto mais polêmico do Direito Sucessório.[i] Os filhos e os pais do morto perdem parte do que receberiam para a viúva ou o viúvo do morto,[ii] fato que provoca natural resistência. O legislador não foi feliz na redação do texto. Muitos disseram ser injusto o dispositivo.[iii] O STJ, em 2010, ou seja, oito anos depois da entrada em vigor do CC/2002, ainda discutia o tema.[iv]
3.      A INFLUÊNCIA DO REGIME DE CASAMENTO NA CONCORRÊNCIA DOS DESCENDENTES COM O CÔNJUGE SOBREVIVENTE. O inciso I do artigo 1.829 enuncia que não haverá concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do morto nos seguintes regimes de bens: Comunhão Universalseparação obrigatória de bens[v]; comunhão parcial, inexistindo bens particulares.  Portanto, pelo texto, somente haverá concorrência entre as duas classes (cônjuge e descendentes) no seguinte regime: comunhão parcial, quando o morto deixa bens particulares.[vi]
4.      A GUINADA HERMENÊUTICA DO STJ – REGIME DA SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. Muito se discutiu Superior Tribunal de Justiça se o cônjuge supérstite casado sob o regime da separação convencional teria direito a concorrer com os herdeiros do morto. Prevalecia a tese da Ministra Nancy Andrigui, no sentido de que a expressão “separação obrigatória”, contida no inciso I do art. 1829 do CC significaria um gênero, englobando duas espécies: separação convencional e separação obrigatória, conforme REsp 992749/MS. Em outubro de 2014, no julgamento do  REsp Nº 1.472.945 – RJ (2013/0335003-3), sendo Relator o Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, restou decidido que : 1. O art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, que concorre com os descendentes do falecido independentemente do período de duração do casamento, com vistas a garantir-lhe o mínimo necessário para uma sobrevivência digna. 2. O intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social. 3. O pacto antenupcial celebrado no regime de separação convencional somente dispõe acerca da incomunicabilidade de bens e o seu modo de administração no curso do casamento, não produzindo efeitos após a morte por inexistir no ordenamento pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao regime matrimonial. 4. O fato gerador no direito sucessório é a morte de um dos cônjuges e não, como cediço no direito de família, a vida em comum. As situações, porquanto distintas, não comportam tratamento homogêneo, à luz do princípio da especificidade, motivo pelo qual a intransmissibilidade patrimonial não se perpetua post mortem. 5. O concurso hereditário na separação convencional impõe-se como norma de ordem pública, sendo nula qualquer convenção em sentido contrário, especialmente porque o referido regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência posta no art. 1.829, I, do Código Civil. 6. O regime da separação convencional de bens escolhido livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial), não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, que é imposto de forma cogente pela legislação (art. 1.641 do Código Civil), e no qual efetivamente não há concorrência do cônjuge com o descendente. 7. Aplicação da máxima de hermenêutica de que não pode o intérprete restringir onde a lei não excepcionou, sob pena de violação do dogma da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal de 1988). 8. O novo Código Civil, ao ampliar os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurou ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que os únicos deixados pelo falecido, direito que pelas mesmas razões deve ser conferido ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é, inexoravelmente, composto somente por acervo particular. 9. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO: Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Moura Ribeiro, decide a Terceira Turma, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Votou vencido o Sr. Ministro Moura Ribeiro. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, João Otávio de Noronha e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 23 de outubro de 2014(Data do Julgamento). Cf. http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTAyMA==&filtro=1&Data=2014-12-18 ; Também em REsp 1.382.170. 
5.      INDIFERENÇA DO REGIME DE CASAMENTO NA CONCORRÊNCIA DOS ASCENDENTES COM O CÕNJUGE SOBREVIVENTE. O legislador disse apenas que a sucessão defere-se aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge (CC 1829, II). Portanto, o regime de casamento entre o morto e cônjuge sobrevivente, na literalidade do texto não tem influência nessa categoria de concorrência. Entretanto, o STJ entendeu que o regime da separação de bens (legal ou convencional) afasta a concorrência sucessória. [vii]
6.      INEXISTÊNCIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO NA CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA. A representação somente se dá por força de lei (CC 1851). Não há na lei civil essa determinação. Dessa forma, apenas o cônjuge sobrevivente tem esse direito. É personalíssimo. [viii]
7.      A POLÊMICA SOBRE A BASE DE CÁLCULO DA CONCORRÊNCIA. A doutrina se dividiu entre três posições sobre a base de cálculo: a totalidade da herança (aquestos e bens particulares); apenas sobre os bens particulares; apenas sobre os aquestos. [ix]  Em o6 de Abril de 2010, a 3ª Turma do STJ decidiu que para preservar o regime da comunhão parcial o cônjuge sobrevivente, além do direito à meação, concorre com os descendentes do morto sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares. Com isso, os bens particulares são transferidos unicamente aos descendentes, mas o cônjuge concorre nos bens comuns. [x]
8.      A TOTALIDADE DOS BENS DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE. Se casado sob o regime da comunhão parcial e o autor da herança tiver deixado bens particulares, além de sua meação, o cônjuge sobrevivente terá direito a uma parte da herança, anteriormente distribuída na totalidade aos descendentes.
9.      O DIREITO À CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DEPENDE DA EXISTÊNCIA DO CONVÍVIO. Se ao tempo da morte o casal estava separado de fato há mais de 2 (dois) anos, não se reconhece o direito sucessório ao cônjuge supérstite. O mesmo se dava quando ao casal separado judicialmente (CC 1.830), lembrado que atualmente não há mais a separação judicial segundo doutrina dominante no direito brasileiro.
10.  CÁLCULO DO VALOR DA HERANÇA ATRIBUÍDA AO CÔNJUGE. A regra matriz para o cálculo está contida no artigo 1.832 do CC. Se o cônjuge sobrevivente teve filhos com o autor da herança, sua quota não poderá ser inferior à quarta parte (25%) da herança [bens comuns]. Se existirem descendentes deixados pelo morto que não são filhos do cônjuge sobrevivente, este receberá quota igual, ou seja, entra no cálculo como se fosse mais um filho [descendente].
11.  FILIAÇÃO HÍBRIDA - A FÓRMULA TUSA.  O Código Civil nada diz como se deve calcular o valor da herança do cônjuge sobrevivente quando o morto deixa filhos com este e também descendentes oriundos de outras relações.[xi] Giselda Hironaka batizou esta situação com o nome filiação híbrida.[xii] Defende-se que com  a “formula Tusa”,  é possível chegar a uma solução razoável. [xiii]

* Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Ipatinga, integrante da Universidade Presidente Antônio Carlos. Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho.  Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG.  Integrante do IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Associado ao IBRADT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário.





[i] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 145
[ii] Maior resistência ainda se verificou com o fato de o companheiro ou companheira do morto concorrer com filhos deste, conforme dispõe o artigo 1790, I e II, do CC/2002.
[iii] LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários so novo código civil: direito das sucessões. Volume XXI, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 234.
[iv] Exemplos: REsp 992.749/MS; 1.111.095/RJ.
[v] Na interpretação, pelo método sistemático, empreendida pelos Ministros do STJ, em relação ao texto do inciso I, do artigo 1829 do CC, na parte que enuncia “ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único)”, concluiu-se que tal regime é gênero que congrega duas espécies: separação legal; separação convencional. Cf. Eduardo Plens Manfredini, in:  Revista Síntese: Direito de Família. Ano XIII - Nº 68 - Out-Nov 2011, p. 173.
[vi] Bens particulares são os bens excluídos da comunhão. Eles estão discriminados nos sete incisos do artigo 1.659 do CC.
[vii]  O STJ, no REsp 992749/MS, se posicionou dizendo que “não remanesce para o cônjuge casado mediante separação de bens, o direito à meação, tampouco à concorrência sucessória” . Cf. Eduardo Plens Manfredini, in:  Revista Síntese: Direito de Família. Ano XIII - Nº 68 - Out-Nov 2011, p. 173.
[viii] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 147.
[ix] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 149.
[x] REsp 1.117.563/SP; Relatora Min. Nancy Anfrighi. 3ª T. DJ 06.04.2010
[xi] Recomendo o artigo publicado pelo IBDFAM no endereço http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=692
[xii] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 172.
[xiii] 3ª Corrente - Na sucessão híbrida, deve-se aplicar fórmula matemática de ponderação para solucionar o problema. Entre tantas fórmulas, destaca-se a Fórmula Tusa, elaborada por Gabriele Tusa, com o auxílio do economista Fernando Curi Peres, cujos parâmetros considerados no algorítimo são:
X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.
C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.
H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.
F = número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.