quarta-feira, 24 de março de 2010

P001 - Jurisdição - Ação - Processo

P001

Notas Didáticas de Direito Processual
Jurisdição, Ação, Processo e Procedimento
Jorge Ferreira da Silva Filho
Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário do Leste Mineiro – UNILESTE
Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho
Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG



1. Propedêutica. O aluno do curso de direito enfrenta dificuldades quanto à fixação dos seguintes conceitos jurídicos: jurisdição; ação; processo e procedimento. Isso decorre principalmente de dois fatores: uso incorreto das palavras no contexto semântico jurídico, deflagrados pelo próprio legislador; o emprego costumeiro das palavras retro, fora do contexto próprio, pela maioria das pessoas que lidam no mundo jurídico: advogados, juízes, membros do Ministério Público. Torna-se, pois, importante examinar com cuidado o significado jurídico correto dessas expressões, pois assim se poderá melhor aproveitar a leitura dos nossos códigos.

2. Jurisdição. O legislador não se preocupou em definir ou conceituar a jurisdição. A doutrina é que se ocupou disso e, com razoável uniformidade, ela se posiciona dizendo que a jurisdição é o ato de o Estado[I], pela pessoa de um juiz, ou de um órgão colegiado, dizer com quem está o direito ou, ainda, dizer que um ato está conforme o direito. Isso significa que o Estado dirá quem tem razão numa lide[II] (o autor ou o réu) ou, ainda, chancelará (homologará; permitirá) a realização de um ato desejado por uma ou mais pessoas ( v.g. uma separação judicial amigável). Importante lembrar que o Estado, como regra geral, não permite que as pessoas busquem os seus direitos diretamente – com as próprias mãos[III]. Em outras palavras, quem pode praticar a jurisdição é o Estado, por meio do juiz natural. Quando a jurisdição versa sobre uma lide, diz-se que a jurisdição é contenciosa. Quando a jurisdição apenas integra a vontade das partes, em consonância com o ordenamento jurídico, ela se denomina jurisdição voluntária[IV].

3. Ação. Atualmente, a palavra “ação” tem a seguinte condensação de sentido: poder constitucional dado às pessoas (naturais, jurídicas, entes coletivos, o próprio Estado) de provocar o Poder Judiciário, devendo usar para isso, a forma adequada prescrita em lei, para que este decida sobre um pedido (condenatório, declaratório, constitutivo, acautelatório, etc).[V] Quem provoca o Estado se denomina autor. É irrelevante para a o exercício desse direito – direito de ação – perguntar se o autor teria ou não teria razão quanto ao seu pedido. O direito de provocar o judiciário é um direito fundamental (Art. 5º, XXXV, CF). Infelizmente, nosso legislador optou por usar a palavra “ação” para designar remédios processuais, ou seja, espécies de procedimentos. Como exemplos, têm-se: “ação de depósito”; “ação de consignação em pagamento”, sendo que a terminologia coerente seria: Procedimento especial para consignar pagamento; procedimento especial para reaver coisa depositada etc. A confusão se torna ainda maior quando se depara com as denominações: ação ordinária; ação sumária etc. A coerência sistêmica levaria tais expressões a serem substituídas por: processo cognitivo com procedimento ordinário; processo cognitivo com procedimento sumário. No estágio atual seria muito difícil reverter essas impropriedades, devido à generalização do emprego dessas expressões. [VI]

4. O Processo. A maioria dos alunos tem dificuldade para diferençar processo de procedimento. Isso decorre de muitos fatores, dentre os quais se aponta o fato de que é quase impossível falar em processo sem fazer referência ao procedimento[VII]. O processo, judicial ou administrativo, é uma criação humana especial quanto à sua finalidade, modo de existir e de se exteriorizar. Trata-se de um meio criado, como via obrigatória de ser utilizada pelas pessoas, para provocar o Estado a cumprir sua função jurisdicional. Este meio [o processo] estabelece regras de comunicação entre as partes[VIII] e o juiz (Como, Quando, o quê a quem, Onde se dirigir etc.). Em outros termos, visto por este ângulo, o processo é uma relação jurídica com regras obrigatórias que se estabelece entre o autor, o juiz e o réu (se houver). As regras obrigam as partes e principalmente o juiz, pois, com isso, evita a arbitrariedade do julgador e confere segurança jurídica quanto ao tratamento igual do Estado às partes. Uma outra forma de perceber o processo se dá pelo enfoque sobre as atividades desenvolvidas pelo juiz e pela parte; são os atos (Elaboração da petição inicial com observância do conteúdo determinado em lei; distribuição da petição inicial; indeferimento da petição inicial; recebimento da petição inicial; mandado de citação com prazo para contestar; apresentação da contestação; certificação do prazo em que foi apresentada a contestação; intimação do autor para impugnar; designação de audiência preliminar; decisão sobre as preliminares arguídas pelo réu na audiência preliminar etc). São os atos; atos jurídicos que se sucedem, em dada ordem. Daí porque vários doutrinadores definem o processo como sequência de atos pré-ordenada[IX]. O legislador resolveu, por uma questão metodológica, classificar o processo segundo o tipo de pronunciamento judicial buscado pela parte autora, daí resultando: O processo de conhecimento; o processo de execução; o processo cautelar.

5. O Procedimento. Há, na legislação processual, diversas formas de organização dos atos que caracterizam determinado processo (formas e sequências de produção). Como exemplo, temos o caso do art. 285 do CPC que ordena ao juiz expedir mandado de citação ao réu, esperar a contestação e depois designar a audiência para tentativa de conciliação. De outro lado, nos termos do art. 278 do CPC, o juiz simplesmente ordenará a citação do réu, designará a data da audiência de conciliação e nesta ocasião é que o réu apresentará sua contestação. A essas diferentes vias de o legislador organizar a realização dos atos no processo, dá-se o nome de procedimento[X]. Na essência, ou seja, ontologicamente, não se diferencia processo de procedimento, pois ambos são constituídos de atos. O procedimento reside na forma com que os atos se desenvolvem. Por isso que é usual aplicar a palavra rito, como sinônimo de procedimento. O processo se relaciona com a substância dos atos. O procedimento se capta na forma de desenvolvimento dos atos, no tempo e no espaço. O processo é o ator, o procedimento a vestimenta do ator, adequada ao seu papel.

6. Procedimento comum e procedimento especial. O Código de Processo Civil brasileiro, divergindo da estrutura temática de outros códigos processuais europeus[XI], não contém uma parte geral. Isso, porém, não quer dizer que a parte geral do CPC não exista, pois ela está disseminada em vários artigos do Livro I – Processo de Conhecimento, tais como o art. 282, pois ele baliza as petições iniciais de todos os outros processos. É no Livro I do CPC, que se encontra o art. 272 do CPC, dispositivo nuclear para entender o significado das expressões “procedimento comum” e “procedimento especial”. No sentido coloquial, a palavra comum é empregada como adjetivo para qualificar aquilo que se apresenta como rotineiro, vulgar, trivial, ordinário, que serve para tudo. De outro lado, especial é aquilo que se apresenta com alguma diferença em relação ao que normalmente se verifica. Esse é o sentido do procedimento especial, ou seja, aquele que se afasta do procedimento comum. Por isso, de fundamental importância é o domínio do conceito de procedimento comum, caso contrário, não se perceberá a sutileza caracterizadora da especialidade de um procedimento. Diz o art. 272 do CPC, que o procedimento comum comporta duas vias de apresentação: o procedimento (rito) ordinário; o procedimento (rito) sumário. No parágrafo único do artigo 272, o legislador informa que o procedimento especial se rege por disposições próprias e, apenas subsidiariamente, se lhe aplica as disposições do procedimento ordinário. O procedimento comum ordinário se rege pelas regras contidas nos artigos 282 a 475-R do CPC. O procedimento comum sumário está regulado nos artigos 275 a 281 do CPC.[XII] Os procedimentos especiais estão localizados no Livro IV do CPC e também em leis esparsas, tais como a lei do mandado de segurança; a lei a ação civil pública etc.

6. As características do procedimento comum ordinário. Deflagra-se o procedimento comum ordinário com a distribuição da petição (distribuição da ação na linguagem comum), devendo essa ser redigida com observância do art. 282 do CPC. Depois de distribuída a petição essa seguirá para o exame inicial do juiz (conclusão), abrindo-se as seguintes alternativas: o juiz recebe a petição inicial e ordena a citação do réu; o juiz detectando defeito sanável, abre prazo ao autor para emendar a inicial; o juiz indefere a petição inicial e extingue “o processo sem resolução do mérito”; o juiz se declara incompetente, impedido ou suspeito e declina de seu poder de jurisdição. Se a petição inicial for recebida, expede-se o mandado de citação e, depois de realizada esta, o réu disporá de 15 dias para contestar. Na contestação o réu tem apenas as seguintes alternativas: nega, fundamentando, as alegações contidas na inicial; não nega as alegações fáticas do autor, todavia afirma no sentido de haver fatos outros que modificam, extinguem ou impedem que se atenda o pleito do autor; fica inerte, podendo verificar ou não o efeito da revelia. O réu não faz pedido na contestação, porém poderá, juntamente com essa, oferecer outras peças processuais (Reconvenção; incidentes de impugnação ao valor da causa ou ao requerimento de justiça gratuita etc.). Se o réu levantar na contestação [argüir] a existência de questões que devem ser decididas antes da instrução processual ou da sentença (argüição de preliminares), o juiz abrirá vista ao autor da “ação” para que este manifeste no prazo de 10 dias. Abre-se também vista se com a contestação vier algum documento anexado, porém o prazo será o normal – cinco dias. Vencida essa etapa, o juiz designa, se for o caso, a audiência preliminar. Nesta, o magistrado deve decidir sobre as preliminares levantadas pelo réu e também sobre as provas que interessam ao feito. Se for deferida a prova pericial, nomeia-se um perito e as partes apresentam os quesitos e indicam seus assistentes técnicos. Apresentado o laudo pericial, designa, se for o caso, a audiência de instrução e julgamento, na qual são colhidos os depoimentos das testemunhas e, às vezes, a oitiva do perito. Vencidas essas etapas o processo (os autos do processo) fica com juiz para dar a sentença. Na sentença o juiz julgará procedente ou improcedente o pedido do autor. Nada se fala em relação a requerimentos do réu. Entretanto, se o réu tiver oferecido a reconvenção, o juiz decidirá se os pedidos do réu na reconvenção (pedidos do reconvinte) são ou não procedentes.

7. Técnicas de especialização dos procedimentos. O legislador criou vários procedimentos especiais, que se caracterizam por dois aspectos: 1º) pelo enunciado expresso do direito que se quer tutelar com o procedimento especial; 2º) pelo afastamento de uma ou mais das características procedimentais do rito ordinário. [XIII] O elemento diferenciador pode estar localizado, por exemplo: no prazo para contestar[XIV]; na possibilidade de formulação de pedido contraposto, tornando desnecessária a reconvenção; no efeito executivo da sentença; no efeito mandamental da sentença; na prolação de sentenças em duas etapas; na permissão para o juízo de equidade; na concessão de antecipação de tutela sem os requisitos específicos do art. 273 do CPC[XV]; na quebra do princípio da inalterabilidade do pedido[XVI].

[I] Explica Pontes de Miranda: “Jurisdição é a atividade do Estado para aplicar as leis como função específica” – Cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I .Campinas Bookseller, 1998, p. 250.
[II] Lide, na proposição de Carnelutti, é “o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um e pela resistência do outro interessado” – Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 37.
[III] “Antes de ter o Estado monopolizado a função de julgar, havia a justiça de mão própria, mas essa justiça ainda não era aplicação da lei como função específica”. Cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo .Campinas Bookseller, 1998, p. 250.
[IV] “Em outros termos, só se estará diante de verdadeira jurisdição voluntária quando o demandante estiver em juízo pretendendo obter um ato judicial que confira validade e eficácia a um negócio jurídico de direito privado que, sem a participação do juiz, seria inválido e ineficaz”. Cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. vol. III. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.566
[V] “ação é o direito subjetivo público, autônomo e abstrato de pleitear ap Poder Judiciário decisão sobre uma pretensão, conexo a ela, para a atuação da jurisdição e por intermédio do processo” – Cf. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. Vol. 1. 20. ed. – atualizada até a Lei 11.441 / 2007. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 79. “A ação é um direito que tem o particular de requerer tutela jurisdicional” – SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. Vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 604.
[VI] Melhor andaram os italianos, pois não a palavra ação para designar qualquer categoria de procedimento, principalmente os procedimentos especiais. De forma coerente, os italianos, sob a rubrica Dell’esercizio dell’ azione, descrevem o procedimento comum (art. 99 – Codice de Procedura Civile. Chi vuole far valere um diritto in giudizio deve propore domanda al giudice competente).
[VII] Nesse sentido: “Processo civil é o procedimento regulado por lei ou outra fonte de direito para realização do direito...” MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. Tomo I.Campinas Bookseller, 1998, p. 298. E ainda: “Não há processo sem procedimento e não procedimento que não se refira a um processo” – GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. Vol. 2. 18. ed. – atualizada até a Lei 11.441 / 2007. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 87.
[VIII] “Partes ou parte”, aqui, podem significar: autor e réu numa lide; ou ainda aqueles que simplesmente buscam a chancela judicial para validar seus atos – divórcio consensual; interpelação; etc.
[IX] “Processo é a soma de atos que objetivam determinado fim” – Cf. SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. Vol. 1. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 29. E ainda, processo “é o complexo de atos coordenados logicamente para alcançar um fim, qual seja, a tutela jurisdicional” – Cf. LOPES, João Batista. Curso de direito processual civil: parte geral. São Paulo: Atlas, 2005, p. 133.
[X] FAZZALARI se posiciona dizendo que “O procedimento se apresenta, pois, como uma sequência de atos os quais são previstos e valorados pela norma” – Cf. Elio Fazzalari. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p.114. “Na exteriorização, o processo se revela como sucessão ordenada de atos dentro de modelos previstos pela lei, que é o procedimento” – Cf. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. Vol. 2. 18. ed. – atualizada até a Lei 11.441 / 2007. São Paulo: Saraiva, 2007, p.87.
[XI] O Código de Processo Civil Italiano está organizado em quatro livros, sob as seguintes rubricas: Disposições Gerais (Disposizioni generali); Do processo de conhecimento (Del processo di congnizione); Do processo de execução (Del processo di esecuzione); Dos procedimentos especiais (Dei procedimenti speciali).
[XII] Não me parece lógico classificar o procedimento sumário como espécie de procedimento comum, haja vista que o próprio parágrafo único do art. 272 do CPC, claramente diferencia o rito sumário do rito ordinário pelo aspecto daquele ter disposições próprias. Se há disposições diferentes para este procedimento, ele não pode ser qualificado com comum. Melhor a estrutura do Código de processo italiano que trata dos procedimento sumário, no título I do Livro IV como categoria de Procedimento Especial (Dei procedimenti sommari: artigos 633 a 705).
[XIII] “Tantas são as peculiaridades e desvios procedimentais em confronto com o procedimento ordinário, que por vezes é difícil, quando não impossível, o enquadramento dos procedimentos especiais na teoria geral do processo, resultando, daí, a necessidade de criar-se uma teoria específica para eles” – Cf. MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos especiais. 11. ed. – São Paulo: Atlas, 2005, p. 61.
[XIV] Artigos 905, 915, 930, 954, todos do CPC.
[XV] Artigos 928, caput (“ações” possessórias) e 937 (nunciação de obra nova).
[XVI] CPC, artigo 920.

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