segunda-feira, 30 de agosto de 2010

T004 - O confisco - caracterização e efeitos



T004 – O Confisco – caracterização e efeitos.

Jorge Ferreira da Silva Filho
Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho - RJ
Membro da Associação Brasileira de Direito Tributário – ABRADT
Integrante do Instituto dos Advogados de Minas Gerais - IAMG
Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil no Centro Universitário do Leste Mineiro - Unileste.

1. O significado da palavra “confisco”. Confisco significa o “ato ou efeito de confiscar”. Por sua vez, a palavra confiscar é o verbo que comunica a idéia da ação de apreensão de alguma coisa em proveito do fisco. [i] No contexto jurídico a palavra confisco e suas variações semânticas estão disseminadas em vários ramos do direito, tais como, o constitucional, o administrativo, o tributário, o penal etc. No seio do Direito Tributário importa buscar a condensação de sentido[ii] que se desenvolveu em torno da palavra confisco contida no enunciado do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, que assim anuncia: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ... IV - utilizar tributo com efeito de confisco. Como ponto de partida, vamos encontrar em De Plácido e Silva que “Confisco, ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, de confiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem ou adjudicam ao fisco bens pertencentes a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fundados em lei”. Ora, mas se o tributo, na dicção do art. 3º do CTN é uma prestação pecuniária compulsória definida em lei, conclui-se que todo tributo tem efeito de confisco, pois ele retira uma parte da propriedade do particular transferindo-a, coativamente para o Estado. Sendo o tributo um confisco[iii] surge então uma antinomia, pois a Constituição proíbe a utilização do tributo com efeito de confisco. A primeira solução para a questão levantada se resolve tomando a definição de que o confisco é um ato de força do Estado qualificado pelo fato de se apropriar de parte da propriedade do particular em benefício da sociedade com ganhos diretos ou indiretos para o expropriado. Por meio dessa primeira condensação de sentido concluímos que o tributo, embora seja um ato de força do Estado que promove a expropriação do particular, ele não será considerado confisco, desde que o Estado reverta essa riqueza arrecada em benefício social, de forma razoável e proporcional. Confiscar, grosso modo, é tomar sem dar nada de razoável, em troca. O confisco não é vedado pela Constituição Federal, tanto que o acolhe, mas apenas excepcionalmente, como categoria de pena. [iv]

2. A configuração do efeito de confisco. Identificar se um tributo produziu o efeito de confisco é uma das mais difíceis tarefas para os profissionais do direito tributário. Afirma-se isso porque a Constituição Federal não criou nenhum parâmetro quantitativo pelo qual se possa aferir se o quantum pago a título de tributo tem efeito confiscatório. Na verdade, a primeira vez que, de forma explícita, a vedação ao efeito de confisco por meio do tributo foi tratada num texto constitucional foi com a Constituição de 1988. [v] O confisco é um conceito aberto, mas, apesar disso, é um princípio constitucional. Não é uma mera norma programática, [vi] mas um comando que obriga o legislador a examinar todas as emanações da lei tributária instituidora de certo tributo, para evitar a ultrapassagem da cinzenta fronteira entre a função de arrecadar e o efeito de confisco. A identificação dessa fronteira, ou seja, do não-confisco, é um complexo ato de interpretação sistemática da Constituição, cujo ponto de partida é o princípio da capacidade econômica para contribuir, passando pelo irradiante princípio da proporcionalidade ou razoabilidade dos atos do Estado, e, por fim, se colmatadando as lacunas encontradas com os imperativos do Estado Democrático de Direito. O valor da prestação pecuniária do tributo, para que não se implemente o efeito de confisco, deve, não apenas preservar o mínimo vital – para preservar o princípio da dignidade do contribuinte – como, também, permitir ao contribuinte usar e gozar de uma parcela da riqueza que produziu ou auferiu. [vii] Portanto, apenas se detectará se ocorreu ou não o efeito de confisco, com a interpretação dos efeitos práticos produzidos pela legislação tributária sob o balizamento da moderna hermenêutica. [viii]

3. O destinatário do comando constitucional do não-confisco. A idéia do Constituinte originário foi a de dirigir esta vedação ao legislador ordinário. Não há negar, porém, que o comando se dirige também ao Poder Executivo, eis que este tem a competência para, por meio de decretos, majorar alíquotas de certos impostos. Por fim, o destinatário é, também, e talvez precipuamente nos dias de hoje, o Poder Judiciário. Afirma-se nesse sentido porque a vedação ao efeito de confisco se mostra como um instrumento útil ao magistrado para “controlar a voracidade fiscal do governo”. [ix] Nada disso, porém, terá utilidade, se o contribuinte não reagir aos excessos do fisco e a magistratura não tiver coragem e disposição para enfrentar estes maléficos efeitos do confisco por meio do tributo.

4. O confisco e a extrafiscalidade. Há tributos, principalmente impostos, que desempenham, além da função precípua de arrecadar para o custeio dos serviços públicos, uma função de controle ou interferência em assuntos econômicos de interesse da sociedade. São exemplos os impostos cujas hipóteses de incidência estão relacionadas com o comércio exterior ou têm efeito sobre o mercado econômico ou financeiro. Por isso, é possível encontrar a tributação de IPI para produtos supérfluos, com alíquotas superiores a 100% (cem por cento). O efeito que se quer provocar com altas alíquotas é o desestímulo a pratica de determinados atos com reflexos econômicos que não interessam à sociedade. Mesmo assim, o Estado não tem ampla liberdade para tributar no campo extrafiscal. O direito de propriedade ainda há de ser observado. [x]

5. A multa com efeito de confisco. A multa pode ser estabelecida em favor do Estado. É um crédito que o Estado tem em relação ao infrator, mas não é um tributo. Nem as multas decorrentes de sanção por inobservância de uma obrigação tributária acessória, podem ser consideradas tributo, pois se decorrem de ato ilícito, elas não podem ser consideradas um tributo, em face da literalidade do artigo 3º do CTN. Apesar disso, a multa pode ser objeto de execução fiscal, pois a Lei da Execução Fiscal permite que se executem dívidas inscritas – Dívida Ativa – seja esta “tributária ou não tributária”. [xi] Há, na tradição brasileira, multas elevadíssimas, principalmente no campo das sanções tributárias. A doutrina se posiciona dizendo que a multa, seja moratória ou sanção por ato ilícito de sonegação, também poderá gerar o efeito de confisco, quando seu valor configurar ultrapassagem aos limites impostos pelo princípio da razoabilidade. Neste caso, haverá efeito de confisco, e este, com raras exceções, é vedado no contexto constitucional, seja o de verve tributária ou o confisco de forma geral ( Constituição Federal, art. 5º, XXII, e art. 170, II). [xii] O Supremo Tribunal Federal já considerou que uma multa, de 300% (trezentos por cento), aplicada sobre o valor do bem que fora vendido sem emissão da Nota Fiscal, tem efeito de confisco. [xiii]

A necessidade da análise sistêmica para identificar o efeito de confisco. Ives Gandra da Silva Martins tem sido um arauto no sentido de defender a idéia de que somente se pode apreciar o efeito confiscatório de um tributo cotejando-o com a totalidade da carga tributária que afeta o contribuinte. Há, segundo o estudioso retro, tributo com efeito de confisco e um sistema tributário de natureza confiscatória. Ambos seriam vedados pela Constituição. Há posições no STF dizendo que a identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária. [xiv]

[i] Novo Aurélio: o dicionário da língua portuguesa – século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p. 526.
[ii] A condensação de sentido em torno de uma palavra num contexto é que permite a efetiva comunicação entre as pessoas. Sem que se verifique uma condensação de sentido em torno de uma palavra utilizada pela Constituição, corre-se o risco de o enunciado nada dizer. Daí se pode falar na semântica, que é o patrimônio conceptual da sociedade, ou o conjunto das formas relativamente estáveis, que são utilizadas pela função que seleciona os principais conteúdos de sentido criados pela sociedade no contínuo de suas operações sociais – comunicação gerando comunicação. Nesse processo há um risco para a comunicação. Ele decorre do fato de que a rigidez adjeta à condensação de sentido, perpetrada pela própria condensação de sentido em torno de um significante, impede, muitas vezes, que se perceba a mudança estrutural ocorrida no sistema social. Cf. também CORSI, Giancarlo et al. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann, p. 143.
[iii] “Assim, a idéia inicial de que, em sua essência, todo tributo é confiscatório por retirar parcela da propriedade do particular e transferi-la ao Estado cede lugar, num segundo momento, ao interesse social, pois o poder público reverte (deveria reverter) o que arrecadou em benefício do próprio cidadão, por meio de obras e serviços públicos indispensáveis...” – Paulo Cesar Baria de Castilho. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 37.
[iv] Art. 5º. ... XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: ... b) perda de bens”.
E ainda:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias. (grifo do autor)
[v] Paulo Cesar Baria de Castilho. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 64.
[vi] Gomes Canotilho, assim, ensina: “Marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica pode e deve dizer-se que hoje não há normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa, que impõem uma atividade e dirigem materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido dessas normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: simples prograsm; exortações morais ... juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico aos demais preceitos da Constituição” – apud: COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 3. ed. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 49.
[vii] “Entende-se por confisco a apreensão de bens do particular em favor do Estado sem a devida indenização. Quando isso se dá por meio de tributo, por ser excessivo, retirando a totalidade ou parcela considerável da renda ou do patrimônio, estamos diante de um confisco tributário” – Cf. Paulo César Baria de Castilho. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 131.
[viii] “Mais concretamente, essa garantia constitucional [não confisco] significa, entre outras coisas, que os impostos, taxas e contribuições de melhoria devem ser compatíveis com a sua finalidade precípua que é produzir receita pública em obediência a normas cujo conteúdo essencial Geraldo Ataliba resumiu em frase seca – entregue dinheiro ao Estado – sem que essa expropriação, no entanto, implique exigir do contribuinte mais do que, efetivamente, ele pode pagar, ou seja, nada além do justo e razoável, do que é adequado, necessário e proporcional em sentido estrito, conceitos que são vagos, é verdade, mas nem por isso insuscetíveis de concretização à luz de critérios da moderna hermenêutica constitucional” – Cf. MENDES, Gilmar Ferreira (et al) . Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. ­– São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.347.
“O problema de maior complexidade no estudo do tributo com efeito confiscatório está na delimitação do efeito de confisco, uma vez que tal resultado se dá de modo indireto, como um terceiro elemento entre dois que se polarizam: O Estado tributante e o contribuinte tributado” – Cf. SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 235.
[ix] MENDES, Gilmar Ferreira (et al) . Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. ­– São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.348.
[x] “Mas é bom lembrar que, ainda que em situações anômalas, não existe uma carta branca para o Estado exigir o quanto quer de tributo. Mesmo nesses casos o confisco, disfarçado de tributo continua proibido. O que se admite é um elastecimento dos critérios preestabelecidos para tributação confiscatória, sendo certo, contudo, que a perda total da propriedade (ou algo bem próximo disso), por óbvio, não deixa de ser confisco, ainda que camuflado sob as folhas da extrafiscalidade”. – Cf. Paulo Cesar Baria de Castilho. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 117.
[xi] Artigos 1º, caput, e 2º, §2º, da Lei 6.830 de 22-09-1980.
[xii] Paulo Cesar Baria de Castilho. Confisco Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 133.
[xiii] ADI 1.075/DF, STF Pleno, Min. Celso de Mello. DJ 17/06/1998; apud: SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 244.
[xiv] SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 238.

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