domingo, 30 de setembro de 2012

FAMILIA 291 - CASTIGO IMODERADO DE FILHO

FAMÍLIA 29.1: CASTIGO IMODERADO DOS FILHOS
 
Professor: Jorge Ferreira da Silva Filho*
Notas Didáticas Sintéticas para Orientação de Alunos de Cursos de Direito
 Disponibilizado no Blog EnsinoDemocrático -  http://jorgeferreirablog.blogspot.com
 Autorizada reprodução total ou parcial, desde que seja citado o site
 
1.      INTRODUÇÃO AO TEMA. No Capítulo sobre o poder familiar, dispõe o legislador que aos pais compete, quanto aos filhos menores, “exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição” (CC 1.634, VII). Exsurgindo a desobediência, um dos meios utilizados pelos pais para compelir o filho a se comportar conforme preconiza a lei é o castigo. Todavia, o castigo imoderado poderá levar o pai ou a mãe a perder o poder familiar ( http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2012/04/familia-01-minidicionario.html ) sobre o filho (CC 1638, I). Por isso, se torna importante aquilatar como a práxis jurídica vem fazendo a leitura da expressão “castigo imoderado”.
2.      PRIMEIRA TENTATIVA CONCEITUAL. A ideia primária de castigo imoderado está associada à brutalidade, violência física, espancamentos, agressão de cunho moral e outros comportamentos correlatos aos retros discriminados.[i] Vincula-se, pois, a noção de castigo imoderado à ideia dos maus-tratos.[ii] O castigo apresenta-se na sociedade como uma forma possível de sanção ( http://jorgeferreirablog.blogspot.com.br/2012/04/familia-01-minidicionario.html). Trata-se de impor ao filho uma circunstância fática desagradável, medida cujo aspecto teleológico é o de inibir a repetição de determinados comportamentos, principalmente o da desobediência aos pais. Exemplos: Castiga-se o filho vedando-lhe o acesso à internet, ao videogame, à televisão, a ida ao clube ou o encontro  com os amigos. Pode-se também puxar-lhe  a orelha, dar-lhe uma palmada, uma surra, uma chinelada etc. O castigo físico como punição e expectativa de desestímulo a comportamentos indesejados  não é estranho à cultura judaico-cristã.[iii]
3.      O CASTIGO FÍSICO DE MENORES NA CULTURA OCIDENTAL. A sociedade brasileira, por muito tempo, admitia que educadores e pais castigassem fisicamente, respectivamente, alunos e filhos, sendo o ato considerado um “procedimento integrado na tarefa de bem educar crianças e adolescentes”. A intensidade do castigo deveria ser sempre sopesada quanto aos aspectos circunstanciais, pois a ilicitude ou ilicitude da conduta dependeria sempre do julgamento quanto à questão da moderação no castigo. Esse sempre foi o problema, ou seja, como estabelecer a fronteira entre os mundos moderado/imoderado. [iv] Não foi diferente em outros países do ocidente.[v] Há relatos de que em países europeus, nas comunidades de operários pobres, os pais  sistematicamente batiam nos filhos quando chegavam em casa, quando não os colocavam para fora dos quartos expondo-os ao frio. Malinowski disse que nessa classe social “o pai é uma fonte suprema de castigo nas famílias pobres também, enquanto a mãe atua como intercessora e muitas vezes participa do tratamento imposto aos filhos”. [vi]
4.      PONTUAÇÕES ANTROPOLÓGICAS DE MALINOWSKI SOBRE O CASTIGO. [vii] Quando uma pessoa põe-se a castigar outra, inegável que aquela tem um poder de fato sobre esta. Tal poder pode ser exercido por vários motivos, dentre os quais se têm o castigo como sanção pela desobediência,  como via de descarregar recalques e frustrações, meio de demonstração de poder (incutir o temor). Pontuou Malinowski que a estrutura patriarcal da sociedade, que predominou no ocidente nos séculos XIX e XX, tem uma relação causal direta com o padrão cultural do dever-poder de castigar os filhos pelas mãos do pai. O modelo patriarcal independia da classe social e da nacionalidade. [viii] Nas classes abastadas, apesar de a mãe raramente amamentar e cuidar diretamente dos filhos, ela os controlava e assistia. O pai raramente entrava no “horizonte do filho e assim mesmo só como um espectador e um estranho, diante do qual as crianças devem se comportar bem, exibir-se e executar o que lhes mandam. O pai é a fonte de autoridade, a origem do castigo”. [ix]
5.      O EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR NO DIREITO COMPARADO. No Código Civil argentino, as limitações quanto ao exercício do poder familiar reclamam o juízo de valor sobre o ato dos pais rotulando-os de moderado ou imoderado. Há também a particularidade de que nesse país os maus-tratos apresentam-se como instituto distinto da ideia do castigo. [x] No Código Civil Italiano há um discurso semelhante, porém com termos mais abertos, tanto que, no artigo 315,[xi] o legislador se preocupa, não com o poder dos pais, mas, ao contrário, com o dever dos filhos menores em relação àqueles. No artigo 330, tem-se, de maneira igual ao Brasil, a perda do poder familiar (Decadenza dalla potestà sui figli), pronunciada pelo juiz, quando o pai ou mãe abusa desse poder e causa grave prejuízo ao filho. [xii] Em Portugal, o Código Civil discorre sobre o instituto denominado “poder paternal”, dispondo o artigo 1878 do CCP que: “1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar seus bens”. 2. “Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida”. Constata-se, portanto, que dentre as disposições citadas, os portugueses estão bem mais adiantados no que se refere à perspectiva de reconhecer que os menores, ainda que tenham a mesma idade, podem ter diferentes graus de maturidade, fato que deve ser sempre considerado antes da aplicação ou emprego do poder familiar no sentido de compelir à obediência.  
6.      A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ATO JURÍDICO “CASTIGO IMODERADO”. Interpretando-se, a contrario sensu, o enunciado do art. 1.638, I do CC, pode-se dizer que, se o castigo que o legislador considera censurável é o imoderado, o castigo moderado, então, está permitido em nossa legislação. Há, porém, como acima visto, várias modalidades de castigo, dentre as quais se destaca o ato físico contra o corpo da criança (o tapa; a palmada; a chicotada etc.). Muitas de minhas alunas  — dedicadas mães  — esposam a ideia de que uma boa chinelada é um eficaz instrumento de educação, todavia, à luz do discurso constitucional penso existir aí uma distorção da leitura do enunciado do artigo 227 da Constituição Federal. Por este dispositivo, a criança está protegida contra violência, crueldade e agressão. Seria a chinelada uma violência, na interpretação do legislador? Alguns defendem, como Paulo Luiz Netto Lôbo, que castigar fisicamente uma criança, ainda que realizado de forma moderada, implica a prática de violência.[xiii] Alguns defendem esta posição radical estabelecendo uma comparação com o direito dos presos. Estes têm o direito à integridade física constitucionalmente assegurada (CF 5º, XLIX). Consequentemente, se não é admitido castigar fisicamente o adulto, não se poderia permitir o mesmo com a criança.[xiv] Há no Brasil muitas condenações de pais pelo fato destes terem desferido imoderadas chineladas no filho.[xv]
7.      CATEGORIAS DE CASTIGOS. Há que se considerar como diferentes o castigo-sanção e o castigo-mau-tratos. Receber maus-tratos, indubitavelmente já é um castigo, no sentido de “sofrimento”. Tal conotação não é objeto deste estudo. Interessa-se, aqui pelo uso da força física dirigida para causar a dor no corpo, o constrangimento, a perda violenta da liberdade (v.g. ser acorrentado ao pé da cama ou confinado num quarto escuro) e outras condutas de força contra a criança e o adolescente. Não há como o direito delimitar objetivamente essa fronteira entre o castigo-sanção imoderado e o moderado. O comando do legislador é fluídico: uma “carta branca” dada ao Estado-Juiz para aquilatar em cada caso concreto qual é a fronteira e se esta foi ultrapassada. Diferentes culturas e diferentes grupos sociais de um mesmo Estado implicarão diferentes fronteiras no tocante ao castigo-sanção. Entretanto, o juiz deverá enfrentar a  realidade de que o castigo corporal aplicado nas crianças e adolescentes brasileiras, como “corretivo” de comportamentos ainda integra o costume das classes média e baixa da sociedade brasileira. Isso  não pode ser olvidado.
8.      O POLÊMICO PROJETO DE LEI 7672/2010 - A LEI DA PALMADA.[xvi] Há o Projeto de Lei 7772 de 2010, que pretende introduzir o artigo “17-A” no Estatuto da Criança e do Adolescente,  para determinar que “A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar, sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou qualquer outro pretexto”. Pelo mesmo projeto, o castigo corporal é definido como sendo: “a ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente”.  Por tal dispositivo um puxão de orelhas ou uma chinelada será considerado ato infracional. Teriam nossos menores a maturidade para assimilar tais direitos? Importante recordar que depois que o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a vigorar, muitos menores tomaram a consciência de que poderiam praticar crimes, sem correr grande risco de lhes serem aplicadas sanções aptas a desestimular os comportamentos sociais indesejados pela sociedade.
 
 
* Professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor da Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito Público pela Universidade Gama Filho.  Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia da OAB-MG.  Integrante do IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Associado ao IBRADT – Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Coordenador Subseccional da ESA – Escola Superior de Advocacia – OAB/MG -2010. Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil no Centro Universitário do Leste Mineiro – Unileste – 2005 a 2010.
 


[i] Comentários ao Código Civil: artigo por artigo. Coordenadores Carlos Eduardo Nicoletti Camill ..[et al]. -São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.1186.
[ii] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.53.
[iii] No Evangelho de João, relata-se que Jesus “tendo feito um azorrague de cordas, expulsou a todos do templo, bem como as ovelhas e os bois”. Narrativa bíblica: Evangelho Segundo João. Capítulo 2, versículos 13 e 15. Azorrague é sinônimo de açoite. Azorragar significa açoitar. Disso se pode extrair a interpretação no sentido de que quem pratica condutas indevidas pode ser validamente açoitado; modalidade de castigo físico.
[iv] MADALENO, Rolf. Curso de direito de familia. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 514.
[v] Cristiano da Silveira Longo pontua que: “Há, em diversas sociedades e também na sociedade brasileira, uma “cultura”, comum a todas as classes sociais, que reflete a dificuldade de reconhecer o outro como um sujeito de direito e permite práticas de violência corporal as mais variadas. Trata-se de uma verdadeira “mania de bater,” como apontam Azevedo e Guerra (2001), que remonta ao período colonial (com a chegada dos colonizadores portugueses e dos padres jesuítas e seus métodos pedagógico-disciplinares). Essa cultura mantém a idéia de que os pais têm o direito e o dever de punir seus filhos a fim de “melhor educá-los” para o convívio em sociedade, corrigindo sua “natureza pecaminosa” ou “perversa” e enquadrando-os no “bom caminho”. Para isso, os pais e educadores podem – e devem – punir corporalmente as crianças da maneira que for necessária, do modo mais “justo e adequado”. Trata-se de uma forma de intimidação e humilhação social, exercida através de uma Pedagogia Despótica”. Cf. http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/psicousp/v16n4/v16n4a06.pdf
[vi] MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1973, p.37
[vii] Bronislaw Malinowski foi professor no Departamento de Antropologia da Universidade de Londres. Em 1927 escreveu Sex and Repression in Savage Society, traduzido em 1973 para língua portuguesa com o título Sexo e Repressão na Sociedade Selvagem - Editora Vozes. O trabalho de Malinowski é essencialmente de antropologia, porém, mesclado com uma visão psicanalítica, porém de ordem crítica.  
[viii] MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes, 1973, p.36.
[ix] Idem, ibidem.
[x] Art. 278. Los padres tienen la facultad de corregir o hacer corregir la conducta de sus hijos menores. El poder de corrección debe ejercerse moderadamente, debiendo quedar excluidos los malos tratos, castigos o actos que lesionen o menoscaben física o psíquicamente a los menores. Los jueces deberán resguardar a los menores de las correcciones excesivas de los padres, disponiendo su cesación y las sanciones pertinentes si correspondieren.
[xi] Art. 315 Doveri del figlio verso i genitori. Il figlio (231 e seguenti) deve rispettare i genitori e deve contribuire in relazione alle proprie sostanze e al proprio reddito, al mantenimento della famiglia finché convive con essa.
[xii] Art. 330 Decadenza dalla potestà sui figli. Il giudice può pronunziare la decadenza della potestà quando il genitore viola o trascura i doveri (147; Cod. Pen. 570) ad essa inerenti o abusa dei relativi poteri con grave pregiudizio del figlio. In tale caso, per gravi motivi, il giudice può ordinare l'allontanamento del figlio dalla residenza familiare.
[xiii] FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo código civil: direito de família. vol. XVIII. Rio de Janeiro:2003, p. 258. LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 282.
[xiv] DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 425.
[xv] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 54.

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