sábado, 6 de abril de 2013

DANO EXISTENCIAL E TRÂNSITO


TRÂNSITO INTERROMPIDO NA RODOVIA PODE GERAR INDENIZAÇÃO?

 

*Artigo de minha autoria publicado no jornal Estado de Minas, edição de 05/04/2013; Caderno - Direito & Justiça.

 


Receber uma importância em dinheiro, como forma de compensação pelas várias horas que passamos parados numa rodovia, em decorrência da interrupção do tráfego motivada por acidente de trânsito, é o direito defendido neste artigo.

Os acidentes provocados pela imprudência dos condutores de veículos de carga (caminhões, carretas e suas composições — “bi-trens”) tornaram-se ocorrências do cotidiano das nossas rodovias. Caminhões  tombam, colidem uns contra os outros, perdem a direção e caem nas valas. Com isso, geralmente,  o trânsito fica interrompido nos dois sentidos da rodovia. O efeito direto disso para os demais usuários  é angustiante: ficar, por vários minutos, “parados na estrada”. A mente e o corpo são afetados.   Uma mescla de frustração e aflição toma conta de muitos. O desconforto instaura-se: calor, sede, fome etc. Penso que a maioria dos leitores concordará que o tempo “jogado fora” na estrada representa uma perda qualitativa e quantitativa de um projeto na vida: um tempo que a pessoa deixa de ficar com sua família; a perda de uma aula; o não comparecimento a um evento importante para a carreira profissional; os sofrimentos físicos como sede e fome; o confinamento no interior do veículo durante a chuva etc. Seria isso um dano indenizável?

Provavelmente muitos juízes dirão que os efeitos da retenção numa rodovia seriam meros aborrecimentos; inconveniências da vida moderna. Entretanto, desenha-se na jurisprudência a concreta possibilidade de o causador do acidente de trânsito ser obrigado a indenizar todos que ficaram “parados na estrada”. Trata-se da reparação pela ocorrência do dano existencial. Explico.

O dano existencial ganhou conteúdo e forma expressiva no mundo jurídico a partir do  caso de Daniele Barillà, julgado na Itália nos anos 90. Barillà ficou preso por 8 anos, injustamente. Reconhecendo o erro o Estado Italiano o indenizou, pelas perdas materiais (lucro cessante), pelos danos morais (sofrimento decorrente da detenção), e pelos danos referentes às perdas no seu projeto de vida (o dano existencial). O professor e doutrinador italiano Paolo Cendon percebeu que essa decisão continha a gênese de uma variante da responsabilidade civil extracontratual (“nuova” responsabilità aquiliana: il danno esistenziale).

Para CENDON o comprometimento das atividades cotidianas (frustração na agenda), pelas quais a pessoa se realiza, impossibilitando a realização de momentos felizes, configura uma deterioração da qualidade de vida.

Estudiosos brasileiros, dentre os quais o ex-procurador do Estado de São Paulo, Amaro Alves de Almeida Neto, esposam o entendimento no sentido de que os enunciados contidos nos artigos 1º, inciso III, e 5º, incisos V e X, ambos da Constituição Federal, perfazem o arcabouço necessário para “admitir a ressarcibilidade do dano existencial” no ordenamento jurídico brasileiro.

Paradigmática é a decisão brasileira do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região que interpretou ser a exigência do trabalho em horas extras, além do limite legal, elemento apto a privar o trabalhador do convívio familiar e de outras atividades fora do trabalho. Em razão disso, condenou o empregador a indenizar o trabalhador.  Embora o acórdão não se refira ao dano existencial, não há dúvida no sentido de que, neste caso, o dano refere-se à perda dos pequenos projetos existenciais da vida.

De forma mais arrojada se postou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao reconhecer expressamente a caracterização do dano existencial, num caso em que a apelante sofrera corte injusto no fornecimento de água (Ap. Cível 70044580918 - 9ª Câm. Civil - outubro 2011). A realidade brasileira, porém, ainda se caracteriza pelo fato de que os danos aos pequenos projetos de vida classificam-se como variantes do dano moral.

Visto acima que nosso ordenamento jurídico, implícita ou expressamente, acolhe o direito de ser indenizado por dano existencial, passo a comparar os efeitos jurídicos dos atrasos de voos aéreos com as interrupções no trânsito. Como se sabe o STJ vem pronunciando que  “o dano moral decorrente de atraso de voo prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador opera-se in re ipsa” (REsp 299.532). Penso que, a rigor, os efeitos de um atraso de voo para o passageiro, ontologicamente, não diferem dos gerados para alguém que fica parado injustamente na estrada. São as perdas na qualidade de vida.

Os fundamentos para a indenização, porém, são diferentes: a empresa aérea responde perante o passageiro com base na legislação do consumo (responsabilidade objetiva e contratual).  No caso das pessoas que sofrem com a interrupção do trânsito na rodovia, a responsabilidade é subjetiva e extracontratual, ou seja, quem deve indenizar é aquele que, por conduta ilícita, provocou o acidente que impossibilitou a circulação de veículos na estrada. Se no acidente há caminhões, a responsabilidade pela indenização será da transportadora, do proprietário do veículo e do condutor.

Vislumbro até que cabe uma ação coletiva (interesses individuais homogêneos) movida por todos que ficaram retidos na estrada, contra as pessoas físicas ou jurídicas acima elencadas.

Não é difícil perceber que se as pessoas vítimas deste dano existencial ingressarem em ações coletivas, o montante da indenização a ser paga pelo causador do acidente pode atingir cifras altíssimas. Quem sabe isso não seria o elemento deflagrador de uma mudança comportamental no trânsito?

 Jorge Ferreira da Silva Filho. 
Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho.
Professor da Faculdade de Direito de Ipatinga - FADIPA.
Presidente da Seccional Vale do Aço do Instituto dos Advogados de Minas Gerais - IAMG. Associado ao IBDFAM.

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